Diário do caminho

Dia 1 - Início, Saint Jean Pied-de-Port

faltam 800km

Iniciamos a caminhada às 7h20min. Tudo o que posso dizer é que a subida dos Pirineus foi extremamente difícil, com subidas ora por uma pequena estrada asfaltada, ora por caminhos em meio a campos de pastoreio com muitas ovelhas, ora ainda no meio de bosques.

Apesar da dificuldade, a beleza das montanhas e vales profundos da Navarra francesa é indescritível. Fizemos paradas para comer algo, alongar e descansar: em Huntto, pequeno vilarejo de duas casas bascas típicas, onde encontrei o francês Marc, e na localidade de Vierge. No alto de uma pedra, uma estátua de Nossa Senhora, naquelas alturas de montanhas, com a cadeia dos Altos Pirineus, ao longe, a perder-se de vista.

Depois da subida, que parecia nunca acabar, e que durou toda a manhã e boa parte da tarde, iniciamos a descida na outra encosta, já com Roncesvalles à vista. A descida também foi áspera e me sacrificou muito o menisco do joelho esquerdo.

Quando terminávamos a descida, já próximo de Roncesvalles, no fundo do vale, encontramos vários casais de franceses no meio de bonito bosque. Iam caminhar nas montanhas, como os europeus em geral gostam de fazer, aqueles idosos dispostos. Estávamos o Ricardo e eu comendo amoras abundantes no Caminho. Trocamos palavras e astral elevado com os franceses, que ficaram admiradíssimos de ver dois brasileiros falando na língua deles lá naqueles confins.

Chegamos à Colegiata de Roncesvalles antes das 17h e tiramos algumas fotos numa pequena ponte medieval. Tínhamos visto Roncesvalles lá do alto, quando iniciávamos a descida, toda ela por bosque, de forma que, vencido este, a Colegiata apareceu de repente à nossa frente.

Boa acolhida, bom albergue, acomodação no dormitório, lavagem de roupas, banho e saída para adquirir um cajado para substituir o porrete pirenaico, que fora muito útil. Fiquei muito emocionado com a passagem por aquelas lindas paisagens dos Pirineus, sem maiores problemas físicos, apesar do cansaço natural e da dor no menisco do joelho esquerdo, principalmente na descida. Um creme milagroso oferecido pela generosa austríaca, Hedwig, retirou completamente a dor.

Em Roncesvalles, revisitei a história de Carlos Magno, imperador francês iletrado, mas com aguda consciência da necessidade de educar seus súditos, começando pelas crianças.

1-CaminhoSantiagoVirtual.pdf

Newsletter 1 - A partida

Dia 2 - Roncesvalles a Larrasoaña

faltam 750km

Dormi melhor em Roncesvalles, mas ainda com problema de sono e um ponta de dor de cabeça, certamente pela mistura da cerveja à tardinha com o vinho da janta.

Acordei cedo, sentei na cama e à luz da lanterna da Júlia fiz algumas anotações. Na saída, tomamos café num bar próximo à Colegiata com um bocadilho de queijo e presunto, metade do qual reservei para comer durante a caminhada rumo a Larrasoaña. Saímos com chuva bastante forte, boa oportunidade para testar chapéu, capa e botas, tudo tendo funcionado muito bem. Vários arco-íris festejavam nossa saída de Roncesvalles.

A etapa até Larrasoaña foi bastante difícil, porque, além da chuva, o terreno é acidentado e o monte do Erro é duro de vencer. As amoras estão presentes em todo o caminho como parte da exuberante e bela vegetação da Navarra. Próximo a Larrasoaña, estávamos comendo amoras para recompor um pouco as energias e a glicose, quando passaram duas senhoras a quem cumprimentamos e que nos disseram que as amoras não estavam muito bonitas porque as chuvas haviam sido fracas. A maioria das amoras eram mirradas, realmente, mas sempre havia exemplares graúdos. Fiquei imaginando, e comentei com meu parceiro Ricardo, que os peregrinos medievais, além da rede de conventos, mosteiros e abadias para apoio e assistência, podiam contar com a generosidade da natureza, com seus frutos e a caça abundantes.

Chegada a Larrasoaña, em torno das 17h30min, por ponte medieval, que os guias referem como Ponte dos Bandidos. Por ali também foi a saída no dia seguinte. O albergue é bem atendido por um senhor, que gosta muito dos brasileiros, mas as instalações, apesar de limpas, são precárias e a contribuição compulsória é de 500 pesetas. A rotina é sempre a mesma: chegada, instalação, banho, lavagem de roupas, e reconhecimento do lugar para ver onde se pode comer. O único para isso é um bar de um basco agressivo e mal educado, com preconceito contra brasileiros. Por falta de alternativa, ali jantamos e tive contato com uma família de Porto Alegre: uma senhora de nome Helena caminhava com o filho Ricardo (mesmo nome do meu parceiro carioca), moradora da Vila Assunção, e cujo marido médico estava em congresso nos USA.

A janta foi farta e gostosa: primeiro prato, sopa de feijão e segundo prato, uma chuleta bem gostosa, com fritas. Na mesma mesa, estavam duas irmãs paulistas que havíamos encontrado em Roncesvalles, moradoras há muitos anos na Suíça. Muito simpáticas, a Cristina e a Teresa.

Dia 3 - Larrasoaña a Pamplona

faltam 722km

A saída para Pamplona foi por volta das 8h20min, após o basco do bar ter sido grosseiro com o Ricardo e comigo. Mas recebeu tranqüila e firme resposta, incidente em que contamos com a solidariedade silenciosa de duas jovens espanholas de Barcelona, à mesa do café.

O trajeto até Pamplona foi tranquilo em meio à exuberância natural da Navarra. Caminho fácil, com chegada por Trinidad de Arre, onde tem mais uma ponte medieval, próximo à qual paramos para descanso e alongamento, com alguns registros fotográficos, inclusive de fachadas de casas fartamente decoradas com flores nas sacadas. Arre é ligada a Villava, onde paramos em simpático bar para um café preto com mineral. Parede do bar era decorada com pôster e camiseta com dedicatória e autógrafo de Miguel Undaráin, celebre e celebrado campeão de ciclismo, natural do lugar.

A caminhada por Villava e Burgada, que são ligadas, algo como Esteio e Sapucaia, no RS, grande Porto Alegre, mas muito mais bonitas, foi tranqüila e agradável. Quando nos demos conta, estávamos chegando a Pamplona. Paramos à beira da ponte medieval de Magdalena, sentamos num banco e repassamos os dados históricos do Guia El País. Em seguida, tiramos fotos e visitamos a antiga fortaleza. Lembrei de Santo Inácio de Loyola e dos jesuítas. Falei a respeito para o Ricardo, subsidiado pela leitura de duas biografias do fundador da Companhia de Jesus.

O Ricardo precisou ir até uma sapataria para tentar impermeabilizar os tênis. Quando estávamos ali, chegou uma senhora com forte paralisia facial, percebeu que éramos brasileiros e nos adotou. Falou que tinha morado em Porto Alegre por muitos anos, que era espanhola nos papéis, mas brasileiro no coração. Tinha morado na Av. Independência, fora religiosa e deixara a Congregação da Imaculada Conceição para cuidar na Espanha da mãe idosa e doente.

A conversa a fez perder seu ônibus para o local da residência, motivo para sair pelo "casco viejo" conosco, mostrando-nos os sítios históricos de maior interesse, inclusive o lugar onde Inácio de Loyola tombou ferido, onde há um monumento alusivo. Deu-nos uma pequena aula de geo-política sobre a questão basca e a Província da Navarra, ajudando-nos a melhor compreender o problema.

Albergue lotado, nos acompanhou na procura de Hostal. No primeiro, de uma conhecida de nossa acompanhante, não havia vagas. Era o Hostal Príncipe de Viena, mas no segundo, Hostal Navarra, tivemos sorte. Ali ela nos deixou, nos despedimos, ficamos com seu cartão, e promessa de contato com dona Laura, que adora o Brasil e os gaúchos especialmente. Falou da família Seguézio e do neurologista Miguel Muratore.

Nos instalamos no Hostal Navarra e saímos para continuar percorrendo o centro histórico de Pamplona. Passamos pelo ofício de turismo para apanhar material, visitamos a cidadela, a Igreja de San Fermin, Igreja Fortaleza de San Nicolás e a Catedral.

Cansado e faminto, mas impressionado com Pamplona e seus sítios históricos, telefonei para a Gládis, falei com ela, a Luzia e o Bruno. Jantamos no Bar Oreja, uma salada mista ótima, com salmão e fritas, acompanhado de um vinho tinto passável.

Voltando para o Hostal, pedi informação sobre bandeiras com determinado mapa e inscrição basca para um velhinho defronte à Igreja fortaleza de San Nicolás. Um simples pedido de informação se transformou numa agradável conversa com o senhor Francisco Xavier, navarro da melhor cepa. Muito dados que ele passou sobre os bascos e navarros coincidiram com os da ex-religiosa Laura. O povo de Pamplona é acolhedor e caloroso. A cidade é um espetáculo, ainda mais vibrante naquela noite por causa do jogo entre o Osasuña local e o Barcelona. As ruas e bares nesse sábado à noite fervilhavam de gente.

Finalmente, depois de tomarmos um aperitivo no balcão de um bar, o que é normal ali, fomos para o bem cuidado Hostal Navarra, com o espírito mais de turistas interessados em história do que de peregrinos.

A vida social, a convivialidade e o encontro de pessoas e famílias acontecem muito nos bares, que regurgitam de gente na virada do meio dia e à noitinha.

Dia 4 - Pamplona a Puente la Reina

faltam 706km

Acordei muito cedo no Hostal Navarra, em torno das 5h. Fui para a mesa fazer anotações, com auxílio da lanterna da Julinha para não atrapalhar o Ricardo, que dormia profundamente. Acabei as anotações e fui de volta para a cama, por volta das 6h30min, dando mais uma cochilada.

Saímos do Hostal por volta das 8h30min, tomamos café em um bar da avenida por onde passa o Caminho de Santiago, onde encontramos uma jovem alemã, que falava bem o francês e fazia o caminho inverso. Ensinamos-lhe o caminho até o "casco viejo" de Pamplona.

A caminhada foi bastante agradável. Domingo, assisti parte da missa em Zarátegui, na subida do Monte del Perdón, com suas torres eólicas e seu monumento ao peregrino. Encontramos alguns ciclistas, que também subiam. Um velho atencioso nos deu interessante dica de como melhor enfrentar o Monte, que nos foi muito proveitosa.

Renovamos a água na bica pública, que devia ter mais de dois mil anos, como costumava dizer o Nelson Rodrigues. Vencemos o Perdón, paramos no monumento ao peregrino e iniciamos a descida. Na simpática Uterga paramos e tivemos uma das mais significativas amostras das rotinas populares, muita gente do vilarejo reunida no bar. Tirei fotos, tomamos vinho da terra, acompanhado de azeitonas, única coisa para comer além de salgadinhos.

Feitos registros fotográficos, deixada Uterga, passamos por Muruzábal e Obanos, com suas igrejas fortalezas, prédios que na idade média tinham destinação não só religiosa, mas também militar. Em Obanos, alguns rapazes e moças com ar domingueiro nos ensinaram, e um deles até nos acompanhou, a saída para Santa Maria de Eunate, onde chegamos muito cansados. Depois seguimos pela carreteira, sem voltar a Obanos, até Puente la Reina.

À noite jantamos no Restaurante Lorca que um rapaz nos havia indicado no Alto do Perdón. Esse rapaz é morador da região e passeava pelas montanhas com sua filha Paola, mais ou menos dois anos, ao pescoço. O jantar no Lorca foi ótimo: filé de terneira como segundo prato, e primeiro prato uma paelha para o Ricardo e um para mim uma salada. Da paelha do meu amigo salvei duas conchinhas do mar Cantábrico para a Julinha.

Dia 5 - Puente la Reina a Estella

faltam 683km

Deixamos Puente la Reina às 9h, depois de tomar café em simpática cafeteria. Ameaçava chover, pus a capa, dispensada logo depois. A caminhada até Estella foi fácil, chegamos bem inteiros. O albergue local é considerado um dos melhores do caminho, é quase um hotel com boa infra e muitos lugares. A contribuição é de 500 pesetas, como na maioria dos refúgios.

Antes de Estella, próximo a Cirauqui, encontramos um casal de paulistas, Rodnei, aposentado do Banco do Brasil, e Cleusa, sua amiga, ambos muito simpáticos. Caminhamos vários trechos juntos. Rodnei, generosamente, deu-me parte de seus micropores para cobrir área avermelhada de meus calcanhares, que indicavam início de bolhas. Apliquei-os antes de iniciar a jornada para Los Arcos. Vamos ver se evitam a formação das famosas bolhas.

Fomos ao Supermercado, onde compramos pão, queijo, presunto e vinho para lanchar à noite, ao invés de jantar. O lanche permitiu-me ter em Estella a melhor noite de sono até agora. Comprei também algumas frutas e uma bebida energética como provisão para a jornada até Los Arcos. No trajeto ao super, telefonei para casa e acabei esquecendo na cabine uma "tarjeta" telefônica de 2000 pesetas, do que só dei-me conta na volta das compras. Fui conferir se, por milagre, ainda estava na cabine, mas alguém já tinha recolhido.

Estella é mais uma das tantas cidades medievais. Na verdade, tem uma parte medieval e outra moderna. Na medieval tem uma igreja com pórtico na arte mourisca, como também há em Cirauqui e Puente la Reina. Parece que são os únicos três pórticos no estilo mourisco, segundo nos informou um senhor morador de Cirauqui. Em Estella, é digno de nota, ainda, o Palácio dos Reis, testemunha imponente de um poder político que a cidade já teve.

No albergue, vários brasileiros, além daqueles que já havíamos conhecido antes. À noite, depois do lanche com queijo, pão, presunto e o bom vinho da Navarra, me propus dar uma volta sozinho por Estella. Cheguei a sair e tirar foto em ponte medieval, mas começou a chover, e acabei voltando ao refúgio para dormir. Falei um pouco com o casal de franceses, Michel e Monique, que havíamos conhecido ainda em Roncesvalles, li o El Pais e acabei dormindo muito bem.

Dia 6 - Estella a Los Arcos

faltam 661km

Depois da primeira noite de bom sono em Estella, talvez pelas boas condições do albergue e por ter lanchado e não jantado, levantei sem muita pressa, porque só poderia ir para a estrada depois das 9h, quando abriam os Bancos. Precisava fazer câmbio, o que fiz no Banco Atlântico, U$ 200, pegando em seguida o caminho indicado pelas onipresentes flechas amarelas. Antes de irmos ao Banco, Ricardo e eu paramos para tomar café numa cafeteria, onde encontramos a brasileira Helena, seu filho Ricardo e uma menina australiana que os acompanhava, estes com problema intestinal. Na conversa, Helena nos deu a dica de um produto do Banco de Boston, bem prático, o Visa-Travel Money, que anotei por me parecer bom.

A caminhada desde Estella foi fácil e agradável. Passamos pela famosa fonte de vinho em Irache, onde fizemos registros fotográficos e experimentamos do vinho, que não é lá essas coisas.

Falei durante muito tempo com um casal francês da Bretanha, que caminha com mais dois casais, um deles suíço, todos seguramente com mais de 65 anos. É comum na Europa pessoas mais velhas irem para a estrada com mochila e tudo.

Na rota até Los Arcos, caminhamos mais de 12 Km em região bastante isolada. Andei largos trechos sozinho para habituar-me ao fato de que após Logroño, onde Ricardo interrompe, não mais terei meu parceiro de jornada. O casal paulista, Rodnei e Cleusa, por vezes caminhava conosco. As frutas continuam abundantes no caminho: uva, maçã, pêra, figos gostosíssimos, e as onipresentes amoras, das quais estou enfarado de tanto comer.

Chegamos a Los Arcos por volta das 16h. Albergue de boa condição, 500 pesetas de contribuição. A rota foi a de sempre: chegar, descansar um pouco. Fazer alongamento, tomar banho, lavar roupa e sair à luta pela comida da noite e lanche para o deslocamento na etapa seguinte.

Voltamos a encontrar a portoalegrense Helena, que nos falou ter deixado o filho Ricardo e a menina australiana, ainda necessitados de recuperação do problema intestinal, num hostal.

Às 20 h, assistimos missa na impressionante igreja barroca de Los Arcos, com magnífico órgão também barroco, integrados os seus tubos à própria estrutura do templo, com um som muito bonito. Na saída, falei com o padre que havia tocado durante a cerimônia, o qual me disse que o instrumento é do Séc. XVIII.

Depois da missa, os peregrinos são abençoados pelo celebrante, convidados a ir para a frente do altar e a informar de onde são, recebendo um "santinho" de São Tiago, com uma oração impressa na língua do país de origem do peregrino. Minha colocação na extremidade do grupo fez com que fosse o primeiro a responder a pergunta do jovem padre, baixo e forte, como ser os bascos. "Where are you from?" "I´m from Porto Alegre, in Brazil."

Tirei algumas fotos do interior magnífico do templo e saímos para tomar um aperitivo digestivo num bar ali perto.

A janta, antes da missa, fora um massa muito gostosa feita pela paulista Cleusa e uma sopa pronta feita pelo Rodnei, acompanhado, para variar, de vinho e pão. O Ricardo arrumou a mesa e eu lavei os pratos. Depois, tratamos de ir dormir, porque a jornada até Logroño promete.

Dia 7 - Los Arcos a Logroño

faltam 640km

Deixamos o albergue por volta das 7h30min, saindo de Los Arcos pelo Cemitério, onde existe no pórtico a seguinte inscrição: "Yo soy hoy lo que tu seras mañana".

Foi tranquilo o caminho. Novamente andei longos trechos só, ensaiando para depois de Logroño, onde meu parceiro de jornada, Ricardo, interrompe. Fizemos excelente parada técnica em Viana, onde tomamos duas "cañas" e fizemos alongamento, cuidamos dos pés e descansamos. Como sempre, abundância de frutos no caminho.

Encontrei roupas caída no caminho, as recolhi e o que imaginei estava certo: haviam caído da mochila de duas moças de Barcelona, que estão no caminho, e que tinham sido solidárias connosco no incidente com o basco do bar de Larrasoaña. Estavam voltando para procurar as roupas, nos encontraram e ficaram exultantes.

Na entrada de Logroño, uma folclórica velha riojana mencionada no guia El Pais, Felisia, fez questão de carimbar nossos passaportes. Ganha uns trocos com isso. Fez alguns comentários interessantes sobre o Caminho, de que o fluxo de peregrinos aumentou muito desde o começo dos anos 80. Deu para notar que todo mundo conhece Paulo Coelho.

Chegamos ao albergue, que é de boa qualidade, logo após cruzar a ponte sobre o rio Ebro. Rotina de sempre. Senti uma certa melancolia no ar pelo fato de terminar em Logroño a boa parceria de caminhada entre o Ricardo e eu. Ricardo telefonou para sua mulher em Paris e ficou preocupado com o relato que ouviu dela de problemas na Itália, durante passeio com sua mãe e tias (do Ricardo), além de angústia pela situação internacional pós-atentados.

Comprei uns cartões-postais para mandar para minha gente em Porto Alegre. Não pudemos visitar a catedral de N. Sra. La Redonda, que estava fechada para restauro. Seu pórtico é muito bonito.

Jantamos num restaurante muito bonito, jantar acompanhado do excelente vinho de La Rioja, de que Logroño é capital, que faz jus à reputação. Tínhamos combinado fazer um registro fotográfico, mas acabamos esquecendo. Firmamos o compromisso de manter contato. Ricardo me pediu que o acordasse quando estivesse preparando-me para deixar o albergue.

Completei a primeira semana de caminhada.

Dia 8 - Logroño a Nájera

faltam 612km

Ricardo me pedira que o acordasse quando estivesse me preparando para sair. Acordamos na mesma hora. Levantamos, juntamos as tralhas e saímos para tomar café, sendo que antes tiramos fotos na frente da Catedral S. Sra. La Redonda, auxiliados por um operário que estava ali defronte o templo. No papo, ficamos sabendo que era romeno, tinha família em sua Pátria, inclusive uma filhinha de 7 anos. Não via a hora de visitar a família, o que deverá acontecer no Natal. Referiu que na Romênia era algo como mecânico de "coches" e borracheiro e em Logroño estava na construção civil. Ficou feliz de poder fazer registro fotográfico para dois brasileiros.

Em seguida, tomamos café em cafeteria muito bonita. Nos despedimos Ricardo e eu muito emocionadamente com promessas de manter contato. Cada um seguiu para um lado de Logroño. Peguei a rota do peregrino e caminhei num ritmo como nunca até então. A caminhada foi muito boa e rendeu. Passei pelo bonito Parque La Grajera, onde tirei fotografia. Parei para descansar e visitar a antiga igreja de Navarrete. Sempre muitas frutas no caminho. Encontrei as duas irmãs brasileiras, Cristina e Teresa, que moram na Suíça. Me convidaram para comer pêras tiradas de uma pereira à beira da estrada perto de vestígios de um antigo hospital de Peregrinos, do Século XII. Próximo a Ventosa parei para descansar de novo, fiz um lanche e toquei direto para Nájera. Pouco antes de Nájera encontrei um pastor com suas ovelhas e cachorros, don Basílio Fernandez. Conversei um pouco com ele. Me falou dos muitos brasileiros que vê no caminho, e tirei fotos.

Logo adiante voltei a encontrar Cristina e Teresa, que me convidaram com castanha. Aceitei uma prova. Estava escutando rádio para melhorar meu espanhol, e Teresa brincou comigo que eu não podia ficar longe do Tchan.

Depois de entrar na cidade, a rota do peregrino é longa e se demora a alcançar o albergue. Descansei um pouco, tomei banho, lavei roupas e fui visitar o imponente e impressionante Monastério de Sta. Maria La Real, ao som ao vivo do canto gregoriano dos monges, medievo puro. Adquiri um guia de visita ao Monastério onde repousam muitos dos reis, rainhas e príncipes do antigo reino da Navarra.

Muito cansado, fui fazer compra da comida para o dia seguinte e me dirigi ao Mezón de la Amistad, indicado pelo hospitaleiro do refúgio de Nájera. Comida e vinho excelentes. Fui o primeiro a chegar para comer. Estava quase terminando quando chegaram as brasileiro-suiças Cristina e Teresa. Sentaram à minha mesa e a conversa transcorreu alegre e leve. São simples e simpáticas essas conterrâneas brasileiras com sua vida organizada na Suíça. Teresa falou-me que seu filho de 10 anos costuma viajar sozinho por boa parte da Europa e é comum ir e vir sozinho dos USA.

Dia 9 - Nájera a Grañon

faltam 555km

Dormi bem à noite. Levantei, como sempre, com muito vontade de pegar a estrada. Arrumei as coisas, fiz um pequeno lanche e saí ainda escuro, procurando as flechas amarelas com o auxílio da lanterna da Júlia. Sem ela, poderia ter errado o caminho. Deixei Nájera muito disposto, caminhei com muita vontade e parei em Azofra para tomar café. Outros caminhantes, inclusive uns catalães tagarelas fizeram o mesmo. Saímos juntos do bar, mas logo depois tomei a dianteira. Imprimi ritmo regular e constante.

Pouco antes de chegar em Santo Domingo de la Calzada, alcancei a austríaca Hedwig, que conheci no início em Saint Jean Pied-de-Port. Depois de Larrasoaña não a tinha visto mais. Ficara no albergue de Azofra e não em Nájera, e também não havia chegado em Pamplona, pernoitando em Cizur. Parece que evita os locais de maior movimento e dorme em albergues intermediários. Hedwig estava bem mais magra e se queixava de fortes dores nas costas. Abraçou-me afetuosa e efusivamente, o que não costuma ser comum nos germânicos. Disse-me que iria ficar em Santo Domingo de la Calzada. Toquei em frente, deixando Hedwig para trás. Meu plano era almoçar em Santo Domingo e tocar até Redecilla del Camino, albergue intermediário, para adiantar a etapa seguinte.

Deixei a mochila no refúgio de Santo Domingo e fui ao Correio para postar alguns cartões para o Brasil, à igreja do galo famoso, onde descansei um pouco e depois almocei peixe com legumes e vinho num restaurante chamado Rio.

Na igreja, um peregrino, ao que parece italiano e meio maluco, reclamava do fato que a visita à nave central era paga e guiada. Não dei bola, mas ele se dirigiu a um jovem casal e a um velho com aquela reclamação, dizendo que a Europa só havia conhecido dois gênios, Mussolini, que organizara a Itália, e Franco, a Espanha. Que se Franco fosse vivo não aconteceria aquela monstruosidade de os padres receberem dinheiro para mostrar a igreja. Intimamente até concordei com ele nesse aspecto, mas o fascismo explícito me predispôs contra o peregrino italiano e maluco.

Depois do almoço e de descanso, peguei minhas tralhas e toquei para a estrada. Estava muito cansado e os pés doíam muito na altura dos calcanhares, o que se acentuava pelo fato de que parte do caminho era por asfalto, o que torna tudo mais difícil. Eram as famosas bolhas se manifestando.

Ao chegar em Grañon, encontrei, descansando, dois ingleses que também iam dormir em Redecilla del Camino. Logo que saíram e que eu me preparava para continuar, começou a chover. Hesitei, mas resolvi ficar ali mesmo em Grañon, onde também estavam chegando para pernoitar as irmãs Cristina e Teresa. Cristina caiu na chegada ao albergue e cortou a boca, internamente.

No refúgio já estava um dinamarquês, a quem já havia encontrado antes de Pamplona, próximo a Zubiri, e que é um sósia perfeito do Lenin. Contou-me que quando esteve em Moscou, as pessoas, principalmente crianças, ficavam de boca aberta olhando para ele, na rua, tal a semelhança.

Foi sorte aquela chuva ter-me obrigado a parar em Grañon, onde o albergue funciona junto à igreja, e o padre é o hospitaleiro. O homem é muito bondoso. Transparece sua virtude. Dormimos em colchonetes no chão, os últimos a chegar ao refúgio: as brasileiras, um casal belga muito jovem, duas criaturas simpáticas e bonitas, com não muito mais de 20 anos. Conversei bastante com os belgas, que revelaram, ouvindo Cristina, Teresa e eu, que lhes era muito agradável aos ouvidos ouvir nosso português.

Depois do banho, enquanto a janta era preparada pelo padre e seus auxiliares, adormeci e fui acordado simpaticamente pela jovem senhora belga, avisando que a janta já seria servida. Inicialmente agradeci, tinha feito lanche ao chegar e não pretendia jantar, mas, após, não resisti à ocasião de compartilhar aquela mesa. Mudei de idéia e subi para saborear uma sopa de alho e macarrão bem gostosos, ao que parece preparados por um senhor auxiliar do padre. Foi bom ter mudado de idéia, porque à mesa estavam uns quatro casais franceses, pessoas já maduras, gente muito boa, bascos de Bayonne.

Quando chegara ao albergue, após o banho, percebi que aquela dor no calcanhar era bolha. Tratei na forma recomendada, mas a localização bem na curvatura do calcanhar e da planta do pé esquerdo dificultava a colocação do comede. Depois da janta e de muita conversa, a familiaridade que se criou no ambiente tornou natural que uma francesa, enfermeira aposentada e trabalhando como "bénévole" com sem-tetos na França, revisasse e fixasse melhor o compeed com esparadrapos.

Digna de registro, denotadora da bondade e sabedoria do padre, a seguinte frase na caixa de contribuições: "contribuye con lo que puedes ou retira lo que necessitas". Falando em frases, acho que antes de Grañon uma placa no caminho trazia isto: "Voy donde sea, desque que sea siempre adelante". Repercute bem nos ouvidos e no coração de quem está no caminho.

Depois da janta, houve oração conjunta na igreja e em seguida dormi direto, não sem antes emprestar a lanterna da Júlia para a Teresa procurar sua máquina fotográfica que havia esquecido num banco do templo.

Dia 10 - Grañon a Villafranca Montes de Oca

faltam 527km

Acordei por volta das 6h com o movimento dos belgas. O padre ofereceu café da manhã aos peregrinos. Não há dúvida que o tratamento dispensado pelo padre hospitaleiro aos peregrinos é inesquecível.

Na saída de Grañon, com o caminho precariamente sinalizado e ainda um pouco escuro, erramos a rota os belgas e eu. Queimamos um tempo em torno de uma meia hora para corrigir. Consertado o engano, caminhei firme, mas ainda sentindo um pouco os pés, principalmente o esquerdo. Passei por vários lugarejos, Redecilla del Camino, Castildelgado e outros, com periódicas paradas para descanso.

Cheguei a Belorado, que é início/final de etapa no guia El Pais, por volta das 12 h. Visitei a igreja de Sta. Maria, século XIV. Pensei em almoçar e depois prosseguir, mas o horários de almoço dos espanhóis é muito bizarro. Só serviriam depois das 13h. Resolvi comprar algo para comer no caminho e tocar direto até Villafranca Montes de Oca. Depois de comprar bebida energética, castanhas, yogurte e bocadilho de queijo e presunto, telefonei para casa e acho que interrompi o sono da Gládis. Estava com vontade de dar notícia. Quando dei-me conta de que em Porto Alegre eram 6h da manhã de um sábado, falei rapidamente e sugeri que ela voltasse a dormir.

Logo na saída de Belorado encontrei os dois ingleses descansando e fazendo um lanche. Quase não consegui comunicar-me com eles, porque meu inglês é muito precário e o francês de um deles mais precário ainda. São atenciosos, mas distantes e parcimoniosos como costumam ser os súditos de Sua Graciosa Majestade.

Um pouco antes de Tosantos, em local de descanso aparelhada com sombra, mesas, bancos e fonte, parei para comer. Um cão pastoreando uma ovelhas ali perto me recepcionou em silêncio. Como ambos estávamos sozinhos, assobiei chamando-o para nos fazermos companhia, mas aparentemente ele não topou, porque afastou-se para perto das ovelhas. Azar dele, o lanche estava bom.

Cheguei por volta das 17h em Villafranca Montes de Oca, tendo passado antes pelas ruínas do Convento de San Fiz (São Félix), onde dizem que foi enterrado don Diego de Porcelos, legendário cavaleiro fundador de Burgos.

Albergue fechado, ao que parece por causa de uma festa da cidade neste sábado. A solução foi ir para o Hostal El Pájaro, onde ocupei o quarto n.º 3, onde cheguei muito cansado. Reagi tomando duas "cañas" de cerveja gelada, antes de subir para o quarto para lavar roupas e tomar banho. A janta só seria servida depois das 21h. Os espanhóis e seus horários! Aproveitei para remeter uns postais para Porto Alegre. No Hostal estão os ingleses e o italiano fascista e maluco, que havia visto em Santo Domingo de la Calzada, e que certamente não fez a etapa a pé, porque não o avistei no caminho.

Caiu uma chuva fortíssima antes da janta. Fiquei pensando que poderia chover no outro dia, quando pretendia sair muito cedo do Hostal, para ir até Burgos, distante uns 40 Km, com o que faria três etapas em dois dias.

Quando cheguei ao Hostal El Pájaro, sentado a uma banqueta do bar, tomava uma "caña" de cerveja, e vi afixado um papel impresso com este interessante poema sobre o Caminho de Santiago, que anotei:

"Camino de Santiago,
Así comienzas, Camino,
Primero en el corazón
Del piadoso peregrino.

Tú, Camino, eres el mismo,
Pero nunca eres igual
Son palabras de Machado
Te hacen, Camino, al andar.

Dejas sierras, buscas llanos,
Te iluminan las estrellas
Y te ensanchas por los campos
Donde se reflejan ellas.

Subes montes, cruzas valles,
Aqui um río, una ladera
Te adentras em mar de espigas,
Camino de Compostela.

Ofreces al caminante
Árboles con su frescor
Y él descansa su fatiga
Que harmoniza un ruiseñor.

Tú sabes de los secretos
De los rumores del tiempo
Escuchando en tu silêncio
Queda absorto el pensamiento.

Eres testigo de fé,
De esperanzas y de añelos
Que se llevan en el alma
Com lenguaje de los cielos.

Los pueblos y las iglesias
Fueron marcando tu huella
Que aún perdura en ti, Camino,
Hasta da la Gallícia bella."

(Amalia Seoane)

Dia 11 - Villafranca Montes de Oca a Burgos

faltam 488km

São 12 h e estou no Mesón Asador Las Cuevas, em Atapuerca, tomando um drinque e descansando os pés e o corpo.

Durante a noite passada em Villafranca Montes de Oca, acordei duas ou três vezes, tomei água do cantil, e antes das 5h já estava completamente desperto. Olhei pela janela e vi o firmamento com muitas estrelas. Bom sinal. Sinal de que a chuva se fora. Arrumei a mochila. Recolhi as roupas lavadas na noite anterior, já secas, pois as deixara secando sobre as lâmpadas de cabeceira.

Saí do Hostal às 6h15min, completamente escuro. Na véspera, tinha averiguado por onde seguia o Caminho. Apesar do céu estrelado, coloquei as perneiras e deixei a capa de chuva à mão. Abriguei-me com a jaqueta de nylon do Felipe, porque estava bastante frio e comecei a subir os montes de Oca, que eram tão perigosos para os peregrinos medievais segundo informa o guia. A subida é muito forte. Fiquei com receio de errar o caminho, o que não aconteceu porque a sinalização do caminho ali é bastante boa e a lanterna da Julinha iluminava muito bem. A subida dos montes de Oca se dá no meio do mato, mas não pude apreciar nada por causa da escuridão. Lembrei-me de quanto me faziam medo os caminhos ermos e escuros que andei trilhando quando criança.

Avancei firme e senti que no alto dos montes o frio era mais intenso. Nenhum problema, porque estava bem abrigado. Quando começava a amanhecer, deparei com o belo monumento aos caídos da Guerra Civil espanhola. A inscrição era em metal, com menção ao ano de 1936, e esta frase linda em conteúdo e forma: "No fue inútil tu muerte. Fue inútil tu fuzilamiento".

A subida deixou-me bastante cansado. Parei para uma pausa e comi uma banana. Fizera lanche à base de frutas e yogurt antes de deixar o Hostal.

Passei por um peregrino no caminho inverso mais ou menos uma hora antes de alcançar San Juan de Ortega, onde cheguei às 9h20min. A igreja local é dedicada ao santo, que tem ali seu mausoléu. O local é histórico, mas não passa de um vilarejo. Isabel, a Católica, procurou vencer a esterilidade vindo a este local, atraída pela fama de santo do religioso Juan de Ortega.

Tomei café no único bar perto da igreja e do albergue de San Juan de Ortega, que, apesar de ser um vilarejo, é final/início de etapa no guia El Pais. Ali fui abordado por alguém que, ao saber que eu era brasileiro, disse ser baiano. Falava muito bem o espanhol, portava viera (concha), mas fiquei em dúvida se era peregrino, ou algum baiano estabelecido em terras espanholas. Foi simpático, mas meu contato com ele foi muito rápido.

Deixei rápido o bar às 10h e ganhei a estrada. Só então dei-me conta que era domingo. Passei por uns "cotos privados de caza", onde havia gente caçando nas proximidades da localidade de Agés. Os espanhóis e seus impulsos primitivos ! Depois de passar por Agés, contemplando paisagens belíssimas, com algum registro fotográfico, parei em Atapuerca, com seus sítios arqueológicos capazes de recontar a história da presença do homem na Europa.

O proprietário do Mesón Asador Las Cuevas foi muito gentil e até me brindou com uma caneta esferográfica, dado que terminou a tinta da que trouxera de Porto Alegre. Todavia, o almoço só seria servido a partir das 13h30min. Enquanto espero, atualizo estas anotações e tomo um drinque, com vontade de ganhar a estrada e chegar em Burgos. São 21 Km desde Atapuerca, que espero engolir até a entrada da noite. Se não puder ficar no refúgio de peregrinos, vou para um Hostal.

Saí do restaurante por volta da 14h30min, satisfeito com a boa refeição, e comecei a subir com vontade a serra de Atapuerca. Vencida esta, lá do alto foi possível ver Burgos, aparentemente tão perto. Doce ilusão ! Descia a serra e Burgos nunca chegava, tendo inclusive desaparecido as torres da famosa catedral, possível de ver lá de cima e durante boa parte da descida.

Passei por vilarejos dos arredores de Burgos e resolvi chegar na cidade pela alternativa de Cascatear, ambiente mais rural, e não por Violaria, rota com mais asfalto. Na entrada de Burgos, parei uma meia hora, tirei as botas, tomei água e descansei. A caminhada em Burgos foi penosa por avenidas que pareciam nunca acabar. Já dentro da cidade, pedi informações sobre o acesso à catedral a duas policiais, que foram muito gentis. Chovia sem muita intensidade, o que me obrigou a colocar a capa, o que certamente deixou-me com um aspecto bizarro, porque as pessoas me olhavam muito.

Com a informação das policiais, caminhei pela avenida Arlanzón, que margeia o rio de mesmo nome, de águas muito limpas em meio à cidade. Quando nosso nível civilizatório for maior, certamente o arroio Dilúvio e o próprio Guaiba terão o mesmo tratamento. O caminho para a catedral passa pelo centro histórico de Burgos, que é de uma riqueza histórica e cultural notável.

Chegando à Catedral, estava tirando uma foto do monumento ao peregrino, quando um casal se ofereceu, e aceitei, para tirar uma fotografia minha junto à estátua. Formamos um interessante par!

Entrei na fantástica Catedral, cuja nave central está em reformas, e acompanhei uma missa em uma das naves laterais. O cansaço e o ambiente deixaram-me emocionados. No final, quando tratavam de fechar o templo ainda me deixava ficar por ali contemplando aquela beleza grandiosa. O padre veio me cumprimentar, quando se retirava. Referi meu cansaço e a condição de brasileiro. Foi muito gentil e mandou um abraço a Santiago.

Tirei algumas fotos. Estava tomando o rumo do albergue seguindo as flechas amarelas, quando no mesmo sentido iam as irmãs Cristina e Teresa, que não via desde a saída do refúgio de Grañon, apesar de elas terem dormido no Hostal El Pájaro, de Villafranca Montes de Oca, sem sair do quarto, segundo me falaram. São valentes essas brasileiras !

O albergue fica distante da catedral. Seguimos juntos, e a caminhada foi penosa pelo cansaço. Fica no bonito Parque Parral, já na saída de Burgos, cortado pelo rio Arlanzón.

Tomei banho, lavei roupas e, sem ânimo para ir a um restaurante, comi uma pêra como janta e tratei de dormir. Havia percorrido 40 Km desde Villafranca Montes de Oca e, assim, conseguira ganhar um dia em relação ao plano inicial de caminhada.

Dia 12 - Burgos a Hontanas

faltam 459km

Dormi bem a noite passada e acordei, como sempre, muito disposto a caminhar. Ao contrário da etapa de ontem, a de hoje foi fácil. Foram 29 Km de Burgos até Hontanas.

Tomei café na saída de Burgos com um bocadilho, por volta das 9h, e o almoço foi excelente em Hornillos del Camino, onde cheguei cerca das 13h. Como a caminhada estava barbada, dei-me ao luxo de sestear por 45 min, sob uma árvore. Turbinado pelo farto almoço e o bom vinho, acordei da "siesta" e venci os 11 Km entre Hornillos del Caminho e Hontanas sem maior problema. Cheguei ao refúgio às 17h30min. Encontrei umas pessoas muito simpáticas: o basco de San Sebastian, Carlos Arturo, e a brasileira Melissa, de São Paulo. Até um americano encontrei antes de Hornillos e, depois, no restaurante, onde perguntou-me se Bush já havia mandado jogar bombas, referindo-se desdenhosamente ao presidente dele como Rambo. Aparentemente, é da oposição democrata.

Depois da rotina da chegada ao refúgio, tomei um chá com leite e duas "madalenas" e comprei algumas frutas na única bodega existente no vilarejo, onde não há telefone para uso com "tarjeta", o que me impediu de ligar para casa.

Vou para a cama cerca das 20h tentando dormir cedo, para estar bem na etapa de amanhã, mais de 30 Km até Fromista.

Boa noite, meu querido diário!

Dia 13 - Hontanas a Boadilla del Camino

faltam 430km

Dormi precariamente em Hontanas. Um italiano próximo da minha cama roncou, toda a noite, um ronco poderoso e sonoro, com direito a rebate com assobio forte.

Tivera contato com esse italiano na minha chegada ao refúgio de Hontanas. Falei que minha região no Brasil devia muito à forte colonização italiana. Ele comentou que seus patrícios não costumam ser numerosos no caminho porque não dá dinheiro. Ri muito e falei que tinha evitado esse tipo de comentário para não ser desagradável. O italiano falou que não tinha problema, porque se sentia cidadão do mundo, em primeiro lugar, e só depois, italiano e romano.

Seria bom que o cidadão do mundo cuidasse mais de não perturbar os cidadãos do caminho com seus roncos.

Levantei por volta das 7h e pus o pé no mundo, mesmo não sendo um cidadão dele como o italiano roncador. Caminhei com gana até as ruínas do Convento de Santo Antão, antes de Castrojeriz. Ruínas impressionantes ! Monges do Século XI, que cuidavam os leprosos e acreditavam numa cosmogonia oriental. Na verdade, tratava-se de uma ordem iniciática, com uma vivência religiosa e espiritual fora do que era comum.

Tomei café em Castrojeriz, que também impressiona com suas ruelas medievais e seu "castro" no alto da montanha, de origem visigoda ou até romana, cenário de muitas batalhas entre mouros e cristãos, em outros tempos, que parecem estar retornando na espiral da história.

Deixei Castrojeriz, subi e desci a última montanha antes das planuras palencianas. Descansei um pouco ao longo do caminho, passei direto, sem almoçar, por Puente Fitero e Itero de Vega. Não tinha fome, porque o café em Castrojeriz fora no capricho. Antes de alcançar a bonita ponte sobre o rio Fitero, passa-se por um antigo, curioso e desativado convento, de onde parece que, de repente, poderá sair um monge medieval.

A certa altura, repousando numa área de descanso antes de Puente Fitero, encontrei um peregrino que faz o caminho, desde Roncesvalles, como quem volta para casa: mora a 30 Km de Santiago de Compostela. Dele recolhi a idéia de ficar em Boadilla del Caminho ao invés de ir até Fromista, encurtando a etapa de hoje e tornando um pouco mais longa a etapa de amanhã, até Carrion de los Condes.

O albergue de Boadilla del Caminho é particular, simpático e acolhedor. Novamente tentei ligar para casa, mas os telefones locais não aceitam "tarjetas", só pesetas.

Fiquei com bastante tempo livre no albergue, onde cheguei cerca de 15h30min. Comi um bocadilho com um pouco de vinho, tomei banho, lavei roupas e descansei um pouco, enquanto não chega a hora da "cena", às 20h.

Dei uma volta pelo lugarejo, olhei a igreja e descobri que se trata do lugar de nascimento de Nicolau de Boadilla, um dos colegas de Inácio de Loyola no Colégio de França e seu companheiro, com outros, na fundação da Companhia de Jesus.

A etapa de amanhã promete não ser difícil.

Dia 14 - Boadilla del Camino a Carrion de los Condes

faltam 405km

Acabei jantando ontem em Boadilla del Camino à mesma mesa com dois rapazes norte-americanos, ambos muitos gentis. Consegui falar com meu inglês precário e em espanhol, que um deles, Wil, falava bastante bem. São da Lousiania, universitários em férias até novembro. São primos, um católico, Wil, e outro protestante, Mac, caminhando, segundo disseram-me, com motivação mais espiritual que religiosa. Falaram ter muita fé e que a caminhada lhes é um exercício de fé, tanto que, sequer, levam consigo um "guide book".

Questionaram-me sobre o que achava dos atentados contra o WTC em NY. Falei o óbvio, que os atentados são deploráveis, mas que os norte-americanos deviam refletir sobre as razões de seu País provocar tanto ódio e ressentimento. Acrescentei que novo governo, de Bush Jr., poderia ter evitado essa catástrofe, se tivesse dito uma palavra, única que fosse, de esperança ao mundo árabe, de que a questão palestina seria resolvida, e de que a política unilateral do atual governo dos USA só fazia piorar as coisas. Wil, de família republicana, seu pai é ex-senador, discordou gentilmente, afirmando que os atentados seriam cometidos de qualquer forma, porque já vinham sendo preparados há muito tempo.

Levantei-me cerca das 7h e fui para a estrada planejando tomar café em Fromista, distante uns 6 Km, dando adeus a Boadilla del Caminho, terra natal do companheiro de Inácio de Loyola na fundação da Companhia de Jesus.

Café em Fromista, a partir de onde tem caprichado "andadero" para peregrinos, e passagem pelas cidades "del campo" da Palência. Em Villarcázar de Sirga cheguei às 12h30min. Comprei uns "regalos" para o pessoal em Porto Alegre numa loja bem sortida ao lado do Mezón de Villarcázar, e remeti pela lista do correio para Santiago de Compostela.

Almocei com os americanos Wil e Mac e um grupo de espanhóis, entre os quais José Luís, de Bilbao, que peregrina com a filha, como promessa pela cura de um câncer. O almoço foi excelente: cordeiro, especialidade do Mezón de Villarcázar, precedida de nutrida salada mista, regado com um bom vinho. Saí do restaurante por volta das 15h30min e toquei direto para Carrion de los Condes, onde instalei-me no albergue paroquial, cuja hospitaleira é irmã do padre, verdadeira sargentona, com poderes plenipotenciários, de ir ao dormitório dar bronca nos peregrinos.

Depois de cumprida a rotina de sempre, telefonei para casa. Estava ansioso para falar com a Gládis e os filhos, pois não ligava desde o último sábado, na passagem por Belorado. A Julinha atendeu e deu-me notícias das notas na escola. Conversei também com o Bruno e a Luzia. Fiquei sabendo das aprontadas do Orpheu.

Sobrou muito tempo em Carrion de los Condes, porque a jornada desde Boadilla del Camino foi muito fácil. Amanhã serão mais de 26 Km até Terradillo de Templários, uma etapa que não é considerada fácil, pois 17 Km do percurso é de caminhada em meio ao nada dos campos da Palência, não se passa por qualquer vilarejo. Pretendo sair muito cedo. Havia planejado levantar alta madrugada para vencer os fatídicos 17 Km ainda à noite, pelo menos em sua maior parte. No entanto, a hospitaleira sargentona falou-me que l albergue só abre suas portas para a saída de peregrino às 6h.

Com o tempo sobrando, saí a passear por Carrion, para visitar locais de interesse histórico e cultural. Na fachada de uma dessas típicas casas muito antigas da Espanha, li uma interessante inscrição: "Aquí nació el caudillo cristiano, prudente consejero y literato insigne, don Iñigo López de Mendonza, em 1398". Preciso informar-me sobre o personagem.

Antes de ir para o albergue, aprovisionei-me em supermercado para a caminhada de amanhã. O almoço fora tão farto, que não tive vontade de jantar. Só fiz lanche à base de frutas antes de dormir.

Conheci no albergue uns brasileiros, entre eles um paulista e uma mineira, cujos nomes não lembro, que caminham juntos, e um rapazinho baiano, cujo nome não perguntei, mas que me pareceu muito simpático.

Dia 15 - Carrion de los Condes a Terradillo de Templarios

faltam 379km

Ontem, esqueci minha concha pendurada no beliche do albergue de Boadilla del Camino. Terei que adquirir outra.

Prevista como difícil, a etapa de hoje confirmou. Foi bem difícil. Saí do albergue em torno das 7h30min, ainda escuro. Na saída de Carrion, encontrei com dois peregrinos alemães, de certa idade, a quem já avistara em etapas anteriores, que não falam com ninguém, principalmente pela barreira da língua. A despeito disso, nos demos recíproco e silencioso apoio na escuridão do caminho e na incerteza da saída da cidade.

A reta é interminável no meio das lavouras de trigo já colhido, estrada com muito pedregulho, o que torna a caminhada mais desconfortável e cansativa. E amanhã, a dificuldade prosseguirá, será mais uma dura caminhada até Burgo Ranero, 31 Km de mais retas intermináveis e estrada de pedregulho.

Cheguei ao refúgio de Terradillo de Templários por volta das 14 h, bastante cedo, dando para descansar bem pensando na etapa de amanhã.

Durante o caminho, lanchei frutas e bebida energética e depois de instalar-me no albergue de Terradillo, comi um bocadilho de queijo é presunto, com vinho.

Conheci nesta etapa um francês, Jean, funcionário aposentado do Museu do Louvre, que trabalha como "bénévole" na Cruz Vermelha, junto a menores de rua, inclusive fora da França. Conversamos bastante, contou-me dessa sua atividade na Colômbia. Entusiasmado com o que faz, carrega, em seu porta notas, fotos de meninos atendidos. Perguntei-lhe se tinha família, filhos, respondeu-me que é "célibataire". Confessou-se grande admirador e saudosista do Gen. Charles de Gaulle. Não disfarçou seu desapontamento com a decadência dos políticos franceses atuais. "Chirac, quelle décadence !", observou.

Enquanto esperava a "cena" do albergue às 20h, conversei no pátio com o francês, alguns espanhóis e dois italianos do norte, da fronteira com a Áustria, cuja língua materna é o alemão e não o italiano. Fiquei sabendo que naquela região pertencente à Áustria antes da unificação, há famílias italianas, na verdade etnicamente germânicas, cuja língua materna é o alemão, e a primeira língua estrangeira em sua escola é o italiano. E os etnicamente italianos nessa região, tem naturalmente o italiano como língua materna, e o alemão, como primeiro idioma estrangeiro.

A conversa girou sobre Paulo Coelho, extremamente popular em toda a Europa, a cuja influência creditam o fato de haver muitos brasileiros no caminho de Santiago. Externei minhas dúvidas a respeito, opinando que o fato provavelmente se deva mais à Rede Globo, que fez importantes reportagens e emissões sobre o tema. Estranharam quando falei que Paulo Coelho não tem no Brasil o prestígio adquirido na Europa, pelo menos nos círculos intelectualmente mais cultivados.

Dia 16 - Terradillo de Templários a Reliegos

faltam 335km

Saí do albergue de Terradillo de Templários antes das 8h. Ainda estava escuro. Chovia com intermitência, provocando os bota-tira capa. Em Sahagun, cidade interessante e de passado poderoso, troquei TCs, conheci o monastério onde fica o albergue, que dizem ser excelente, fiz lanche, tratado otimamente pelo garçom do Mesón, que adivinhou minha condição de brasileiro. Ajudou-me até a pôr a mochila e a capa, pois ainda chovia à hora em que saía para retomar o caminho. Passei pela famosa ponte, e pelo cenário onde travou-se histórica batalha entre muçulmanos e as tropas de Carlos Magno, quando, segundo a lenda, as lanças dos guerreiros cristãos floresciam ao ser cravadas no chão, sinal da proteção divina.

Na altura de Calzada del Coto, optei por pegar a calçada romana e não o "andadero" dos peregrinos. Aparentemente, era o único peregrino a fazer essa escolha, os demais devem ter seguido pelo andadeiro. No trajeto, resolvi não dormir em Burgo Ranero e caminhar mais 13 Km até Reliegos. Foi uma caminhada interminável pela "meseta" leonesa. Não avistava nenhum aglomerado urbano naquele horizonte de planura imensa, mas avancei sempre, até porque não tinha outra saída. A sinalização do caminho era boa, caminho semeado de "mojones" com o símbolo do Caminho de Santiago, mas com um problema: conduzia a Mansilla de las Mulas e não a Reliegos, aquela distando cerca de 7 Km adiante. Vi um vilarejo ao largo do caminho, mas como a sinalização não ia para lá, o deixei de lado e continuei caminhando quase desfalecendo de cansaço. O caminho era de pedregulho, o vento era frontal e por vezes chuviscava. Buscava energia de espírito para caminhar até aquela cidade, que aparecia no horizonte, ao pé da serra leonesa, que eu imaginava fosse Reliegos. Ao longe, na estrada no meio de lavoura de trigo já colhido, aproximava-se uma senhora, que num primeiro momento achei fisicamente parecida com minha mãe. Quando nos encontramos, perguntei se aquela cidade lá no fundo era Reliegos. O alívio foi enorme quando informou que Reliegos era o vilarejo que aparecia ao lado do caminho, e os aglomerados urbanos no horizonte eram Mansilla de las Mulas e alguns projetos habitacionais vizinhos.

Mercedes era o nome da senhora. Quando soube que era brasileiro tomou-se de cuidados por mim, prontificou-se a levar-me, e levou-se, até o refúgio de Reliegos, falou que seu falecido marido foi funcionário da Volkswagen, em São Paulo, nos anos cinqüenta, que gostava e lhe falava muito do Brasil. Foi um anjo, dona Mercedes, moradora de Reliegos, que me pediu, ao despedirmo-nos, uma prece por ela a Santiago.

No refúgio, conversando com uns franceses, que também estavam prosseguindo sem querer até Mansilla de las Mulas, dei-me conta de que havia caminhado 45 Km desde Terradillo de Templários. Foi a etapa mais longa, até agora. Dificilmente farei outra igual.

Jantei mal num "Mesón" perto do bom refúgio local, com meia garrafa de vinho ordinário, e fui dormir consolado pelo pensamento de que a etapa do dia seguinte seria curta, permitindo chegar não muito cansado a Leon.

Dia 17 - Reliegos a Leon

faltam 310km

A jornada até Leon foi fácil. O sacrifício do dia anterior valeu a pena, para que Leon pudesse ser adequadamente visitada. Comi uma maçã na saída de Reliegos e toquei para Mansilla de las Mulas, onde tomei um bom café. Em Leon, cheguei cerca das 14h. A sinalização para o peregrino que entra em Leon é perfeita, inclusive com orientação bem nítida para a escolha do albergue, o municipal ou o das religiosas. Dirigi-me ao albergue das Irmãs, onde o acolhimento foi muito simpático, e onde muitos peregrinos chegavam.

Tomei banho, lavei roupa, descansei um pouco, com direito a uma hora de sono, levantei fui à luta para conhecer Leon. A catedral é fantástica. Visitei, ainda, outras jóias culturais e históricas desta cidade bimilenária, fundada pela VII Legião Romana, segundo dá conta um monumento próximo à Igreja de San Isidro.

Valeu a pena forçar um pouco a barra na etapa a partir de Terradillo de Templários, para que a chegada a Leon fosse tranquila e pudesse a cidade ser apreciada como deve. Telefonei para casa e fiquei sabendo da morte da Iná. Retornei à Catedral de Leon e recolhi-me numa ala lateral para refletir um pouco, elevar o pensamento e deixar as lágrimas fluir, lamentando nossa recíproca incompreensão, enquanto um casamento de gente chique se realizava na nave principal, ao som de música belíssima.

Saindo da Catedral, voltei ao albergue para participar de ato litúrgico, que as Irmãs Carbajalas realizam diariamente com os peregrinos.

A janta foi razoável num "Mesón" próximo ao albergue, recomendado por um funcionário que deve receber alguma gorjeta. Sentei à mesa com um baianinho muito espiritualizado, de nome Gilmar, que havia conhecido em Carrion de los Condes e a quem havia avistado durante o caminho. Politizado, relatou ter sofrido perseguição de carlistas, comentou que toda a Bahia sabe que ACM mandou matar um genro, e que sua filha viúva depois suicidou-se, que ACM mantém um casamento apenas de fachada, e que Luiz Eduardo realmente era cocainômano. Estuda filosofia na Puc de Salvador, mora numa comunidade católica de favela, já pensou ser padre, mas encontrou dificuldade para compatibilizar alguns valores religiosos católicos com certa compreensão que tem da espiritualidade. Depois de Santiago de Compostela, vai ao sul da França ficar dez dias numa comunidade tipo Emaús. Quanto à faculdade, diz ter negociado com os professores sua ausência de cinquenta dias, devendo apresentar trabalhos.

À noite, dormi com dificuldade graças aos roncos no beliche ao lado, tanto do hóspede da parte de cima quanto de baixo. Dei uns dois ou três puxões no saco de dormir do que estava na parte superior. Adiantava um pouco, e logo os roncos retornavam. Apesar de tudo, acordei disposto a retomar o caminho.

Dia 18 - Leon a Hospital de Órbigo

faltam 275km

O Guia El Pais previa a etapa de Leon até Villar de Masarife. A saída de Leon para o peregrino é muito mal sinalizada, bem ao contrário da chegada. Tateando e perguntando, acabei seguindo o caminho até o Museu de Leon, ao lado do qual funciona um hotel de luxo. Era por volta das 8h, ainda escuro e muito nublado, com muitos turistas japoneses fotografando e filmando tudo o que podiam no Largo de São Marcos, onde há tocante monumento ao peregrino, junto ao qual pedi para um ciclista fotografar-me. Por coincidência, era o peregrino ciclista que roncava ao meu lado na noite anterior. Muito gentil o rapaz, clicou minha máquina e pediu que também fizesse o mesmo com a dele.

Em simpático estabelecimento defronte à Praça São Marcos, Café dos Peregrinos, tomei café com "tostadas" e segui em frente. A saída de Leon, como dito, é mal sinalizada, como acontece em todas as cidades maiores do caminho. Caminhei procurando retirar-me da cidade, passei pela área industrial, e quando vi já estava em outra cidade, Virgen del Camino, segundo o guia, que, na verdade, é arrabalde de Leon.

Na sequência, peguei a alternativa do caminho pela montanha para Villar de Mazarife, em detrimento do que margeia a carreteira. Passei por Fresnos del Camino, Oncina de Valdoncinas, Chozos de Abajo, onde descansei cerca de uma hora, com direito a tirar as botas, tomei um "vazo de vino" com pão e queijo. Refeito, toquei firme, passei quase direto por Villar de Mazarife, onde apenas fiz breve descanso. A estrada depois de Villar de Mazarife é um asfalto em reta que parece interminável. Por mais que o peregrino se distancie da cidade, Villar nunca desaparece da vista quando se olha para trás, como a castigar quem a desprezou.

Havia decidido não ficar naquela cidade e adiantar a etapa seguinte em quase 15 Km, ficando em Hospital de Órbigo, para que a chegada a Astorga fosse mais tranquila e essa importante cidade pudesse ser bem visitada. Foi a mesma estratégia para chegar em Leon, aprendizado da etapa de Burgos, onde cheguei tão esgotado, praticamente à noite, sem condições de conhecer muita coisa.

Pouco antes de Hospital de Órbigo, estava descansando à beira do caminho, quando fui alcançado por um americano do Texas, Miguel, a quem já tinha visto em Fromista e Carrion de los Condes, acompanhado da mulher. Agora estava sozinho, o que leva a crer que sua mulher venceu etapas de ônibus ou táxi. Lamentei não falar melhor o inglês. Apesar da camaradagem estabelecida, a comunicação ficou prejudicada, porque Miguel também não falava espanhol. Tiramos fotos de histórica ponte ali existente. Miguel preferiu ficar num Hostal e eu dirigi-me ao refúgio da paróquia.

Atualizei minhas anotações no restaurante, após refeição muito boa, regada por um bom vinho. Antes de ir ao restaurante, a rotina de sempre: chegada ao albergue muito cansado, carimbo da credencial, banho, lavagem de roupas, descanso por algum tempo. Tentei ligar para casa, mas não encontrei ninguém. Resolvi ligar para o Felipe, que tinha ido fazer sua boa ação de levar donativos para entidade assistencial. Falei com a Lenise, deixei abraços e beijos e fui jantar.

Terminada a janta e a atualização das anotações, fui direto ao albergue para tratar de dormir e preparar-me para a etapa de amanhã até Astorga, terra de gente valente, capital da Maragateria.

Dia 19 - Hospital de Órbigo a Astorga

faltam 258km

Dormi muito bem em Hospital de Órbigo, porque não havia roncos. Aliás, havia pouca gente no refúgio, de modo que era o único na ala do dormitório em que fiquei. Comi uma maçã ao sair, pensando em tomar café num dos dois pueblos próximos a Órbigo, pelos quais passaria. Não havia café em nenhum dos dois. O jeito foi colher maçã e pêra à beira do caminho, como deviam fazer o peregrinos medievais.

Na saída, encontrei um grupo de alemães, moças e rapazes, que não eram peregrinos, mas aparentemente iriam a pé pela montanha até Astorga. Como tantas vezes fizera ao longo do caminho, mastigava e saboreava flor de funcho (anis), muito abundante em diversas regiões da Caminho, o que foi notado por um dos caminhantes alemães, que ficou curioso e pediu-me informação.

A subida da serra leonesa foi agradável, ficando definitivamente para trás as "llanuras palentinas" e "mesetas" leonesas. Superada a serra depois de umas três horas de caminhada, apareceu Astorga, apresentada pelas torres de sua Catedral. A vista de Astorga lá no vale deu um ânimo muito grande. Caminhei sem parar até Santibañez de Valdiglesias, onde cheguei por volta das 12h ao Bar Oásis, nome muito apropriado, e onde descansei, tomei vinho, água mineral, com pão, presunto, queijo e salamito. Ali também chegaram outros peregrinos e o grupo alemão, além de um casal de brasileiro, do RJ, que havia conhecido poucos minutos antes Santibañez, na descida da montanha, Zé Maria e Solange.

Não fui para o albergue de Astorga, que é muito ruim, segundo todos os comentários. Fiquei numa pensão bem simples ali por perto. Descansei, tomei banho e fui à luta. Astorga é muito bonita e tem passado histórico de tenaz resistência a dois cercos das tropas napoleônicas. Na região da Maragateria, Napoleão Bonaparte não obteve sucesso e começou seu fracasso na Espanha. Há monumento alusivo no centro de Astorga, com os nomes dos heróis da resistência maragata.

A Catedral de Astorga e seu museu são muito interessantes, bem assim o Palácio Gaudí. Os restaurantes anunciam muito o "Cosido maragato" e as "mantecadas". Pensei em jantar um "cosido", mas fiquei com receio de inovar a dieta e prejudicar a caminhada, de modo que resolvi jantar o trivial, na companhia dos patrícios Zé Maria e Solange, que fazem o caminho pela segunda vez. Ele caminha com uma pequena bandeira branca, símbolo da paz, e distribui pequenas pedras semipreciosas para espanhóis que sejam simpáticos e acolhedores.

Após a janta, tratei de ir dormir logo, para estar em boas condições amanhã, etapa até Rabanal del Camino, por onde pretendo passar e avançar na etapa seguinte, talvez até El Acebo.

Dia 20 - Astorga a El Acebo

faltam 222km

De fato, fiz a etapa Astorga/Rabanal del Camino, onde me aprovisionei de frutas e suco energético e me preparei para subir os Montes Irago.

Caminhei muito disposto, a partir de Astorga, de onde sai ainda escuro. Tomei café em um bar ao lado de um posto de gasolina na saída da cidade. Já estava no caminho, quando encontrei o texano Miguel e sua mulher, desta vez fazendo a etapa a pé, fazendo lanche à beira da estrada. Ofereceram-me "bread", agradeci, desejei "buen camino" e segui em frente. Em mais ou menos uma hora e meia, venci uns 10 Km, passando por Murias de Recivaldo e Santa Catalina de Somoza. A manhã estava belíssima, o caminho era muito lindo e os peregrinos ao longo da estrada, sob aquela luz da manhã, formavam uma cena tocante. Tirei algumas fotos.

A certa distância de Rabanal del Camino, alcancei o baianinho Gilmar, com quem havia jantado em Leon. Dá gosto ver e conservar com alguém como esse baianinho. É um menino espiritualizado, à procura de aprofundamento de sua espiritualidade, católico crítico, com uma consciência de espiritualidade que o aproxima dos espiritualistas em geral. Depois de Santiago de Compostela, pretende ficar uns dez dias numa comunidade na França. Contou-me, também, que pretende ir à Índia, nesse movimento de busca de aprofundamento espiritual, em seus 23 anos de idade.

Em Rabanal del Camino, não me detive, apenas o suficiente para aprovisionar-me. Subi o Monte Irago sem sentir muito cansaço, turbinado pela beleza natural daquelas paragens desabitadas e misteriosas.

Na famosa e fantasmagórica Foncebadon, bem próximo ao vilarejo, deparei com um rebanho de ovelhas pastando e dois enormes cachorros estavam ali por perto deitados embaixo de um moita. Atrevi-me a assobiar para eles e um dos cães, de pelo baio, o outro era oveiro (pelagem branca e preta), levantou-se e veio em silêncio contra mim, sem dar qualquer latido. Aquela aproximação silenciosa deixou-me em dúvida quanto à real intenção do bicho, já que não me pareceu agressivo. Como o ditado popular diz que cão que late não morde, é bom ficar em guarda contra cão que se aproxima sem latir. Foi o que fiz. Na dúvida, estaquei e preparei meu santo bastão de peregrino para, se preciso, despregar uma senhora bordoada no "perro". Quando parei, ele parou também, e então segui bem devagar, não sentindo qualquer medo. O cachorro voltou a deitar sob a moita de onde meu assobio o retirara. Parece que os badalados cães ferozes de Foncebadon não passam de cães pastores em honesto desempenho de sua tarefa, sem quaisquer das conotações mistificadoras em voga.

Quando estava chegando em Santa Catalina de Somoza, o casal Zé Maria e Solange estavam saindo do vilarejo. Abanei de longe, mas aparentemente eles não notaram. Mais adiante, passando por El Ganso, eles me chamaram de dentro de um bar. Acabei chegando e tomando uma coca-cola com uma rosca massuda tipo sonho. Depois do descanso, continuei a caminhar e já estava saindo de Rabanal del Camino, quando o casal chegou. Apresentei-os ao baiano Gilmar, que deve se dar bem com Zé Maria, porque ambos são a simpatia em pessoa.

Em Foncebadon, olhei o esse pueblito fantasma, principalmente uma estalagem da idade média. Notei que umas duas casas são habitadas. Havia até uma viatura oficial da Junta de Leon y Castilla e um funcionário uniformizado semelhante a um guarda falava com uma velhota que parecia ter retornado do medievo, em seu vestido preto e largo, desleixada, gorda, desdentada, e lenço também preto na cabeça. Aparentemente, mora em Foncebadon. Deve ser resistente.

Deixei Foncebadon sem fazer lanche, com o propósito de fazê-lo, e descansar, na Cruz de Ferro. Continuei subindo o Monte Irago e cheguei à Cruz de Ferro, onde também chegou em seguida um rapaz de Pamplona, extremamente simpático, de quem Zé Maria já me havia falado. Dois franceses ciclistas já madurões também chegaram na mesma hora. Conversamos, ficaram visivelmente satisfeitos de ver um brasileiro falando com eles em francês. Um deles perguntou-me onde aprendera francês. Ao ouvir que o aprendera na Aliança Francesa da minha cidade, comentou orgulhoso que sua filha trabalhava na Aliança Francesa da Birmânia. Esse mesmo francês prontificou-se a tirar uma foto minha colocando a pedra que eu levara de Porto Alegre, com os nomes da Gládis, dos filhos e o meu próprio, para depositar na Cruz de Ferro, pedindo proteção a todos, somando-me a uma tradição mais que milenar. Ao continuar o caminho em sua bicicleta, os franceses, efusivamente, desejaram-me, e à minha família, saúde e felicidade. Os franceses em geral têm um ar de superioridade, não facilitam muito a aproximação, mas quando vêem alguém valorizando, de alguma forma, a sua "douce France", acabam se tornando muito simpáticos.

Saí da Cruz de Ferro pensando muito, como sempre, em minha pequena tribo de Porto Alegre, com a certeza de que eles acabarão cumprindo bem seu papel nesta vida, sendo pessoas de bem e úteis à sociedade. Da Cruz de Ferro, se continua ainda a subir os Montes Irago, até passar pelo ponto mais alto do Caminho de Santiago, um Posto do Ministério de Defesa da Espanha, que, dizem, será desativado e transformado em refúgio de peregrinos, o que deve ser fantástico lá naquelas alturas. A partir daí, toca descer as montanhas, parte por asfalto e parte em atalhos. Um vento muito forte açoitava o pobre peregrino na descida da montanha. Pretendia dormir no albergue de El Acebo, onde cheguei cerca das 17h30min. Muito simpático, o albergue. A janta foi muito boa: salada mista, filé de terneira com batatas fritas e vinho. Estas notas foram atualizadas enquanto esperava o jantar, depois da rotina de sempre do albergue.

O albergue de El Acebo é particular, e seu proprietário apresentou-me uma funcionária brasileira de Porto Alegre, que mora em Ponferrada e vem trabalhar na copa do albergue. De nome Lúcia Gomes da Silva, veio à minha mesa, fala português com sotaque espanhol. Está desde 1999 na Espanha, morou na Catalunha, onde freqüentou escola de arte em Barcelona, é pintora e assina seus quadros como Lú, tendo, segundo falou-me, feito exposição em Laguna.

Antes de ir dormir, telefonei para a Gládis, falei da personagem, e ela ficou com a impressão de ter conhecido a moça em Porto Alegre, em razão de algumas coincidências.

Dia 21 - El Acebo a Cacabelos

faltam 190km

Não dormi bem no albergue de El Acebo. Acredito que foi o excesso de cansaço pela jornada duríssima de ontem, da subida e descida dos Montes Irago. Afinal, o refúgio de El Acebo é muito bom, não havia muita gente e entre os presentes nenhum roncava.

Saí ainda escuro do albergue e terminei de descer os Irago rumo a Ponferrada. Na descida, passei por uma espécie de cabana, antes de Molinaseca, onde estavam afixadas numa árvore várias mensagens de agradecimento a um tal de Balbino, por milagres que costuma fazer para as dores dos peregrinos que passam por aquele fim de mundo. Prossegui, e no caminho vinha subindo um velhote com uma sacola de plástico à mão. Nos cumprimentamos, ele parou e fez-se perguntas. Na conversa, fiquei sabendo que era Balbino, morador de Molinaseca, que estava se dirigindo para sua cabana na descida da montanha, onde tem seu local de massagens. Falei do meu estado, de certa fraqueza que sentia nas pernas pela etapa duríssima do dia anterior e da noite não muito bem dormida. Deu-me conselhos de como usar o cajado, examinou minhas pernas e sugeriu que ficasse em Cacabelos, não forçasse muito o corpo indo até Villafranca del Bierzo. Ofereceu-se para fazer massagens, mas recusei porque não sentia nenhuma dor específica, só fraqueza nas pernas. Disse-lhe que muito provavelmente aceitaria seu conselho de dormir em Cacabelos.

Na conversa, Balbino elogiou muito os brasileiros e meteu os pau nos franceses e nos italianos, principalmente naqueles. Muito simpático, o Balbino. Nos despedimos com muita cordialidade, agradeci a charla agradável naquela manhã dos Montes Irago e os conselhos e segui em frente.

Tomei café em Molinaseca. Descansei um pouco e cheguei em Ponferrada, onde visitei o Castelo dos Templários e outros sítios históricos. Deixei Ponferrada por volta das 13h. Passei por uns dois pueblos e em Camponaraya fiz uma pausa de hora e meia para um bom descanso, e para comer algo mais consistente. Cacabelos dista cerca de 6 Km de Camponaraya. Durante a caminhada ainda estava em dúvida se aceitava a sugestão de Balbino. Quando cheguei em Cacabelos, sentei num banco defronte ao Santuário das Angústias, ao lado do albergue municipal, para examinar o guia e decidir finalmente se dormia ali ou seguia para Villafranca del Bierzo, distante 8 Km. Estava cansado, mas acho que dava para tocar em frente. Examinando o guia, vi que podia pernoitar em Cacabelos e amanhã passar simplesmente por Villafranca del Bierzo. Examinei também alternativas para as etapas seguintes e acabei decidindo dormir em Cacabelos, cujo albergue é de excelente qualidade, o que não é ressaltado no guia. Há dependências independentes para dois peregrinos, ao invés, como ocorre na maioria dos refúgios, ficarem todos num mesmo ambiente.

Cumpri a rotina de sempre e saí para jantar numa pizzaria onde as anotações do caminho foram atualizadas. Nessa pizzaria, estava uma jovem senhora alemã peregrinando com um menino que não deve ter 10 anos, e que, inclusive, carrega mochila.

Cacabelos é cortada pelo bonito e cristalino rio Cúa, com praia urbana, e muitos peixes se exibindo, que podem ser vistos de cima da ponte.

Dia 22 - Cacabelos a O Cebreiro

faltam 153km

À noite, fiquei com receio de problemas digestivos, tive sono agitado e intermitente. Tomei um dos remédios da Gládis e acabei não tendo problema.

Ontem, quando voltava para o albergue, depois da janta, um peregrino cruzava, cambaleante de cansaço, a ponte sobre o rio Cúa e o ajudei a localizar o refúgio. Hoje de manhã, aquele peregrino saiu do albergue à mesma hora em que recomecei a caminhar rumo a Villafranca del Bierzo. Estava escuro e acabamos nos aproximando, porque eu iluminava o caminho para ambos, já que ele não tinha lanterna. Fomos juntos até Villafranca del Bierzo, a 8 Km de Cacabelos. Era frei franciscano, Simon, pároco de Medjugorje, na Croácia. Falava precariamente o francês e o espanhol, mas conseguíamos nos entender, ainda que com dificuldade.

Não me demorei em Villafranca del Bierzo. Separei-me do frei no albergue, onde ele parou para dar um telefonema à procura de um convento de franciscanos na cidade. Demorei-me apenas o suficiente para tomar café num bar e retomei logo o caminho. Optei pela alternativa da montanha, ao invés da carreteira, por onde se passa também por um túnel, tudo a tornar essa etapa uma das mais difíceis de todo o Caminho de Santiago de Compostela. O caminho a partir de Villafranca del Bierzo pela variante da montanha é duríssimo, além de dois quilômetros mais longo, mas tudo fica amenizado pela beleza das paisagens na cruzada da montanha, cuja subida muito forte inicia ainda dentro da cidade, onde num muro há advertência sobre essa dureza, aliás registrado no guia El Pais. Realmente muitíssimo difícil, mas esse preço alto vale pagar, porque a beleza que se descortina lá de cima é deslumbrante. Passa-se por floresta de castanheiras. Registrei numa foto um morador e produtor da localidade, que queixou-se da pouca rentabilidade das castanhas, cujo ganho financeiro mais suculento fica com o intermediário. Na Espanha como no Brasil, e certamente como em todo o mundo regido pelo sagrado mercado.

Na descida da montanha, encontrei um casal que já havia visto e cumprimentado na parada para desjejum em Camponaraya. Eduardo e Rose são gaúchos de Caxias do Sul, moram em Barcelona onde ele, administrador de empresas e professor, faz doutorado em economia. Após a descida da montanha, é inevitável um trecho de uns 6 Km pela carreteira, com tráfego muito pesado e perigoso para o peregrino, que tem que caminhar por estreito acostamento.

Em VegadeValcarce, parei para almoçar no "Mesón de las Rocas" e foi um horror. Meu nível de exigência não é elevado, mas foi impossível comer o peixe que serviram como segundo prato. O primeiro ainda deu para engolir. Levantei em silêncio, paguei e saí. Só então entendi porque era o único cliente no restaurante.

Na saída, trocando a água do cantil na fonte do vilarejo, um sujeito pediu para caminhar comigo. Era um canadense de Quebec, Normand Beaudin. Eu estava hesitando sobre se subiria o Cebreiro ou se dormiria no refúgio em Las Herrerias para enfrentar a dura subida no dia seguinte. Caminhando com o canadense, aposentado da empresa pública de águas, achei que dava para encarar. E encarei, mas a jornada foi duríssima. Depois de Las Herrerias, a subida é muito árdua. Chegamos no vilarejo La Faba, tomei uma mineral e uma cervejinha e comprei três bananas. Depois dali, o canadense foi em frente, estava mais em forma do que eu. E não consegui acompanhá-lo. Tem 62 anos e um pique formidável. Cheguei exausto no alto de O Cebreiro às 17h30min, junto com uma moça alemã, que peregrina com o sobrinho com cerca de 9 anos, que já havia avistado em Cacabelos.

Depois de carimbar a credencial e instalar-me no albergue, jantei com os caxienses Eduardo e Rose, pessoas muito agradáveis. Ele é colorado fanático, e identifica-se na Europa como brasileiro do Rio Grande do Sul, gaúcho, tão impregnado está desse sentimento, no que não é bem acompanhado pela mulher. Ficou muito satisfeito quando soube que tenho sentimento aproximado e que o meu amigo Ricardo Naveiro, carioca parceiro da primeira semana de caminhada, tem consciência e reconhece a característica diferenciada do povo gaúcho.

Dia 23 - O Cebreiro a Sarria

faltam 114km

De noite, esqueci a roupa no varal do refúgio e amanheceu completamente molhada. Choveu muito durante a noite e amanheceu chovendo. Tomei café no "Mesón" de O Cebreiro e saí na névoa intensa.

Os peregrinos caminhando ao longo da estrada asfaltada pareciam fantasmas se deslocando na bruma densa. Apesar disso, a manhã foi ficando bonita à medida que as horas avançavam. Fiz vários registros fotográficos. A saída para a estrada foi tarde, depois das 8h30min. A etapa seria até Triacastela, segundo sugestão do guia El Pais, mas para mim, como sempre, esta é uma questão em aberto. Na estrada, decido até onde vou caminhar. Como estava disposto, senti que caminharia além de Triacastela.

A subida do Alto do Poio é curta, mas muito forte. Por volta das 12h30min, parei para desjejum no vilarejo Viduedo, onde serviram um queijo cremoso e um vinho muito bons, com pão. Toquei em frente. Chovia a intervalos e a intervalos eu punha e retirava a capa de chuva. Numa dessas, perdi o guia. Como no caminho tudo pode acontecer, tinha quase certeza de que algum caminhante o encontraria procuraria encontrar o dono. Assim, parei para descansar numa área de repouso antes de Triacastela, onde se encontravam alguns franceses. De fato, daí a pouco, chegava ali um jovem casal de ingleses que, ao verem os franceses retomando o caminho, falaram "Just a moment please, someone lost his guide". Apressei-me em responder no meu inglês rudimentar "Ok ! I lost my guide", seguindo os agradecimentos que a ocasião impunha e os sorrisos satisfeitos do casal de ingleses, que já haviam avistado antes em Viduedo, onde também pararam no mesmo bar, para descanso e lanche. Coisas do Caminho !

Parei na igreja de Triacastela, que fica junto ao cemitério. Já havia sol, tratei de pendurar na mochila minhas roupas molhadas. Carimbei a credencial de peregrino e deixei Triacastela para trás, pelo bonito e inóspito caminho de San Xil. Parei algumas vezes para descansar, por breves minutos, inclusive num vilarejo cheio de bostas de vaca, mas provido de contêineres para coleta do lixo humano, onde fiz lanche, que repartir com dois cachorros que vieram por ali.

Cheguei ao albergue de Sarria às 18h30min, com o que acabei fazendo quase duas etapas neste dia. Nesse ritmo, devo chegar a Santiago de Compostela no dia 09.

Na igreja de Triacastela, recolhi um impresso com este poema, de autoria do pároco, Augusto Losada Lópes: "SIEMPRE HAY TIEMPO ... NUNCA ES TARDE

Si uma mañana despiertas
con ganas de nada;
Si ni siquiera de alienta
abrir una sola ventana;
No dejes que tu alma se seque.
Recobra tu antigua esperanza.

Si una tarde cualquiera
Recorres la estrecha vereda;
Si respiras profundo
Y no hueles lo que te rodea;
Detente un segundo y suspira.
Tu sangre recobra la vida.

Porque siempre hay tiempo para volver a nacer.
Siempre hay tiempo para volver a vivir.
Siempre hay tiempo para volver a empezar
Lo que nunca pudiste terminar.

Si la luna te guía
Y no causa em ti la alegría,
ni recuerdos de amores,
nostalgias de días mejores.
Aprieta la mano en tu pecho,
destruye los malos momentos.

Porque siempre hay tiempo ...
Porque siempre hay tiempo para volver a nacer.
Siempre hay tiempo para volver a vivir.
Siempre hay tiempo para volver a empezar
Lo que nunca pudiste terminar."

Dia 24 - Sarria a Gonzar

faltam 84km

O albergue de Sarria é muito precário. O espaço para o peregrino na parte de baixo do beliche é muito exíguo, inclusive para um "pouca sombra".

De qualquer maneira, deu para dormir bem, mas minha disposição física não foi muito boa. Antes das 8h saí do albergue, escuro como sempre no horário de verão espanhol. Fui para a estrada com a esperança de tomar café em Barbadelo. O minúsculo vilarejo, final/começo de etapa pelo guia El Pais, estava com seu bar fechado. No pueblito de Rente, atendi à propaganda de um cartaz afixado num poste do caminho: "Carmen Lopes - Desayunos - Todo para el Peregrino". Saí da estrada e desloquei-me até o estabelecimento a uns 50 metros. Estava fechado. Dirigi-me aos fundos, onde uns dois ou três velhos lidavam numa estrebaria. Alguns cachorros meio festivos me deram mais atenção. Um dos velhos se dispôs a abrir a "Casa de Carmen" para servir um café, mas foi logo avisando que tinha pouco tempo, precisava continuar seu trabalho.

Abriu o "estabelecimento", instalou-me no refeitório e serviu um café morno, sempre resmungando que tinha pressa. Não podia servir bocadilho porque demorava muito, tinha pouco tempo, só serviria torradas, na verdade pão torrado. Também havia chegado ao local uma dupla de jovens alemães, rapaz e moça, e mesmo sem nos entendermos direito começamos a rir da situação.

Tomado o "lauto" café, toquei para a estrada e caminhei sem parar até Ferreiros, onde fiz alto para descansar e comer algo, que o café da Carmen Lopes e do velho resmungão não fora suficiente. Encontrei no bar o canadense Normand Baudin, lanchamos juntos, conversamos e tiramos foto para registro.

Houve muita chuva nesse trajeto, chuva típica da Galícia, entremeada com sol e períodos de temperatura baixa. Diz-se que esse clima galego se deve a que a Galícia recebe diretamente todos os influxos das variações meteorológicas e de temperatura do oceano.

Saindo de Ferreiros, segui direto para Portomarin, onde cheguei apenas para conhecer a famosa igreja transplantada. Descansei e tomei algo numa cafeteria e voltei para a estrada rumo a Gonzar, que tinha fixado como final de etapa, enfrentando subida forte.

Alcancei Gonzar moído de cansaço, sentindo forte dor muscular na coxa esquerda. Albergue simples, com serviço precário no único bar existente mantido pelo hospitaleiro. Só servem bocadilhos. Pedi dois, um para comer ali, acompanhado de vinho e água mineral, e outro para a manhã seguinte.

Santiago de Compostela se aproxima. Devo chegar na Terça-feira, dia 09, e para assistir à missa do peregrino no mesmo dia devo sair do albergue de Pedrouzo/Arca entre 5h e 6h.

Na Galícia, estou tomando toda a chuva que não tomei antes, cheirando e vendo bosta de vaca como nunca em minha vida. Se o Paulo Coelho, a Shirley McLane e outros artistas tiveram visões transcendentais, a mim tocaram somente visões de vacas e de bosta das próprias.

Dia 25 - Gonzar a Melide

faltam 53km

No caminho a Gonzar, encontrei duas ou três vezes um rapaz espanhol, de Cadiz, de nome Servando Márquez. No albergue desse vilarejo, mantivemos contato e combinados sair muito cedo rumo a Melide. De fato, antes das 6h estávamos arrumando a mochila e o mesmo estava fazendo um casal, Luiz, madrileno, e sua mulher, Gisela, berlinense.

Saímos do albergue de Gonzar cerca das 6h30min, usando lanterna para orientação no caminho. Caminhamos sem parar até às 9h30min, quando fizemos alto na área de descanso de um pueblo, para comer um bocadilho e tomar um suco de laranja. Como quase sempre ocorre na Galícia, chovia muito, o que torna essa província muito verde e húmida.

Feito o lanche, caminhei firme até Palas de Rei, com muita chuva, obrigando a uma parada numa cafeteria, para uma taça de café quente com um bolo tipo madalena. Ainda sob chuva forte, saí da cafeteria e estava me informando sobre a saída do Caminho, quando ouvi alguém me chamar. Era o madrileno Luiz, que esperava com sua mulher berlinense, numa esquina, que a chuva amainasse, já que sua capa não era lá essas coisas. Luiz e Gisela falam alemão entre si, e ela tenta se comunicar com a gente num espanhol muito precário. Conversamos um pouco e toquei em frente.

Apesar da chuva e do vento, não estava achando a caminhada muito difícil, muito embora o guia mostre essa etapa com a convenção das "três botinhas". Paradoxos do Caminho de Santiago de Compostela!

Caminhando tranquilo e descansando quando sentia necessidade, cheguei a Melide às 15h, sem o esgotamento físico de outros finais de etapa. Não voltei a sentir nada no músculo adutor da coxa esquerda, que me preocupou bastante ontem na chegada a Gonzar. A pomada e a massagem cuidadosa foram eficientes, com alguma ajuda do Matamoros.

Continua chovendo muito em Melide. Às 17h30min, saí para assistir uma missa na "Capilla del Carmen", recomendada pela hospitaleira do albergue como muito bonita. Voltei da missa ainda sob chuva, com a capa de peregrino, o que deve ter-me emprestado um aspecto de monge medieval.

Com fome, fui para meu beliche aquecer-me e esperar as 20h, quando os estabelecimentos começam a fornecer a "cena". Fiquei pensando em telefonar para casa, depois da janta, e que Santiago de Compostela está a duas jornadas.

Antes de chegar a Melide, passava pelo pueblo de Furelos, quando uma senhora à porta da igreja convidou-me para entrar. Na igreja, estavam Luiz e Gisela já de saída. A senhora fez uma verdadeira exposição sobre aquele templo dedicado a San Juan Bautista, de origem pré-românica, igreja pequena, mas com uma significativa e rica iconografia em seu interior. Há uma imagem de Santa Luzia, com dois mantos, por baixo um vermelho e por cima um branco, ambos com carga simbólica, e um Cristo crucificado com a peculiaridade de ter a mão direita despregada da cruz, pendendo disponível para auxílio ao peregrino necessitado.

Dia 26 - Melide a Pedrouzo

faltam 20km

Santiago de Compostela está ao alcance da mão. Curioso! Na partida da peregrinação, em Saint Jean Pied-de-Port, no dia 13 de setembro, meu aniversário, integrei com toda a naturalidade um grupo formado pelo brasileiro Ricardo, os italianos Mário e Bárbara e a austríaca Hedwig. Ricardo e eu formamos excelente parceria, com muita camaradagem, até Logroño, quando ele interrompeu o Caminho. Agora na chegada, com a mesma naturalidade, formei grupo a partir de Gonzar com o madrilenho Luiz, sua mulher berlinense, Gisela, e o espanhol Servando Márquez. Em meio a esses dois momentos, caminhei quase sempre sozinho, salvo pequenos trechos de eventual caminhada conjunta com alguém.

A partir de Gonzar, decidimos caminhar juntos, principalmente pelo apoio recíproco que se faz necessário para as saídas muito cedo dos refúgios. Hoje, por exemplo, saímos antes das 6h30,min do albergue de Melide. Caminhamos direto até Arzua, onde fizemos alto para desjejum e descanso. Tomamos muita chuva.

Esta etapa foi bastante fácil, se comparada com outras, apesar de bastante longa, 32,4 Km. Chegamos a Pedrouzo (Arca) às 15h, depois das 8 (oito) horas de marcha, sob chuva intensa em determinados momentos. No entanto, em alguns momentos também havia sol neste cambiante e instável clima da Galiza. As mudanças de sol para chuva e de chuva para sol dão-se de uma hora para outra. Fui o único do grupo com calçado adequado. Todos os companheiros ficaram com os seus encharcados.

No refúgio de Pedrouzo, de boa qualidade, banho tomado e roupa lavada, fomos dormir um pouco para descansar até a hora da janta. Combinamos amanhã deixar o albergue por volta das 5h da manhã, para chegarmos à catedral de Santiago de Compostela com folga assistirmos à missa tradicional, tendo antes já providenciado o último carimbo da credencial, a compostelana e a instalação no albergue.

O madrilenho Luiz e sua mulher são dessas figuras excepcionais que se encontram no Caminho de Santiago: ele é pacifista militante, ambos vegetarianos obrigados a exceções no caminho; ele vive entre Madrid e Berlim, onde dá conferências a convite de ONGs sobre serviço militar e objeção de consciência; segundo me falara durante a janta em Melide, recusou-se a servir as forças armadas espanholas por objeção de consciência e só não foi preso e condenado por providencial lei de amnistia; Gisela é uma mulher silenciosa e reflexiva, ao que parece com muita vida interior.

Em nenhum outro albergue vi tanta euforia e agitação quanto no de Pedrouzo. São grupos ruidosos de alemães, portugueses, espanhóis e, claro, brasileiros: é a alegria incontida causada pela perspectiva da chegada a Santiago de Compostela amanhã.

Dia 27 - Pedrouzo (Arca) a Santiago de Compostela

faltam 0km

Neste 27º dia de caminhada, cheguei a Santiago de Compostela, com os companheiros do final da jornada, Luiz, Gisela e Servando, depois de ter iniciado esta fantástica experiência no dia 13 de Setembro, data do meu 52º aniversário.

Saímos do refúgio de Pedrouzo (Arca) de madrugada, às 4h40min. Acordei às 2h40min e não mais consegui dormir, um pouco pela ansiedade de chegar a Santiago e concluir essa aventura física e espiritual extraordinária, e um pouco porque um rapaz de São Paulo, no beliche ao lado, que conhecera no albergue durante a tarde, roncava muito forte e em diferentes tonalidades.

Às 4h15min, resolvi acordar meus companheiros. Tínhamos combinado na véspera acordar às 4h30min, o que permitiu ao Servando, tremendo gozador, dizer que eu estava certo: "cuatro y cuarto es mejor que cuatro y media". Gozações à parte, todos concordaram com a minha idéia de levantarmos cedíssimo para chegarmos a Santiago com tempo suficiente para a burocracia de final de peregrinação, instalação no albergue e missa do peregrino, inclusive com banho tomado.

Ao sairmos do albergue chovia intensamente, mas nada detinha a nossa determinação. Caminhamos firmes na escuridão chuvosa, com nossas capas e lanternas. Fizemos pequenas paradas para descanso quando a chuva havia cessado.

No Monte do Gozo, fizemos uma parada técnica demorada para um bom descanso e alimentação, depois de quatro horas de marcha, antes de alcançarmos a Catedral.

Como tinha dormido pouco, a certa altura do caminho meus passos eram os de um zumbi, tão sonolento estava. Mas acabou passando, à medida que a luz do dia chegava.

Depois do Monte do Gozo, na entrada de Santiago de Compostela, um arco-íris nos aguardava. Servando prontificou-se a fazer-me um registro fotográfico. Curioso que no começo da caminhada, na saída de Roncesvalles, também fomos brindados, meu bom companheiro Ricardo e eu, com bonitos arco-íris. Há quem diga que é um bom augúrio para o peregrino, tanto quanto o galo cantar na igreja de Santo Domingo de la Calzada, o que ele fez quatro vezes enquanto lá estive. Deus queira que realmente signifique algo bom!

Ao chegarmos à Catedral, estávamos todos algo atônitos e sem maior reação no início, em meio à multidão de turistas na Praça do Obradoiro. Logo, no entanto, a emoção tomou conta de nós, e nos abraçamos muito emocionados, com lágrimas nos olhos.

Feita a primeira visita à Catedral, fomos à secretaria do peregrino, que estava abrindo naquele instante, de sorte que nosso grupo foi o primeiro a ser atendido. O procedimento na secretaria é simples: duas moças examinam a credencial, fazem algumas perguntas, lançam a última certificação e emitem a compostelana na hora, facilidade possível porque o documento está impresso e apenas o nome do peregrino é manuscrito em latim.

Recebida a compostelana, fomos ao albergue, que fica no Seminário Menor, algo distante, para nos instalarmos, largarmos as mochilas e voltarmos à Catedral para a tradicional missa.

A missa foi bonita, mas, inexplicavelmente, o ambiente para recolhimento e reflexão foi prejudicado pelas fortes batidas dos trabalhos de restauração que a Catedral está recebendo numa de suas naves . Achei mesmo desrespeitoso com o peregrino não terem os responsáveis mandado cessar a barulheira tão prejudicial ao clima de recolhimento espiritual que deve permear um momento especial daqueles.

Finda a missa, fomos cumprir os rituais que vêm desde os peregrinos medievais: colocar a mão na coluna do Pórtico da Glória, e, semelhante à umbanda, bater a cabeça três vezes na cabeça da escultura, que seria a representação de mestre Mateo, autor da belíssima escultura, que é o Pórtico da Glória. Demos, também, o tradicional abraço por trás na escultura de Santiago, que está na abside da catedral e visitamos a cripta onde se conserva a urna que conteria os restos mortais do Santo. Fiz registro fotográfico dessa urna e da cerimônia do botafumeiro, prejudicado pela multidão presente. Vamos ver no que vai dar.

A Catedral de Santiago de Compostela é realmente magnífica, uma verdadeira orgia de pedras, segundo interessante expressão do guia El Pais.

Algo inexistente no interior da Espanha atual, havia vários esmoleres na Catedral, o que parece ser inevitável nos grandes centros, porque o mesmo pude reparar nas Catedrais de Burgos e Leon.

Cumpridos os rituais, Luiz, Gisela, Servando e eu fomos almoçar fora do "casco viejo", onde os restaurantes são muito voltados para os turistas tradicionais.

À tarde, o programa foi dormir no refúgio para recompor as forças e o sono deficitário da noite anterior. À noite, fomos levar o Servando à Estação Ferroviária, viajaria toda a noite para Madrid, onde faria conexão para Soria, antes de voltar para sua Cadiz natal.

Na volta ao albergue, fiquei pensando e comentei com o madrileno Luiz como são curiosas certas coisas do Caminho de Santiago, como a harmoniosa e agradável convivência de um grupo formado por criaturas com circunstâncias pessoais tão diferentes: Luiz e Gisela, militantes pacifistas e vegetarianos, com estilo de vida propositadamente alternativo, convivendo otimamente com duas pessoas convencionais, Servando, policial da Guarda Civil espanhola, instituição não muito bem vista, e eu, juiz aposentado e servidor público.

O Caminho de Santiago é um crisol que funde todos os significados, criando-os novos, enquanto refunda significantes.

Estes textos de diário são um relato pessoal para nos ajudar a viver mais em detalhe este caminho virtual para Santiago de Compostela.